Histórias iguais, endereços diferentes: a realidade das mulheres trans em SP

Laboratório de JO 2020
8 min readOct 20, 2020

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Por Carlos Henrique Filho, Dante Rego, Gustavo Solitto, Iúri Medeiros e Júlia de Deus, alunos do 1° JOC

Quando você passa por dificuldades ou precisa de ajuda na sua vida… a quem você recorre? Muito provavelmente essa resposta está na forma de algum membro de sua família. Uma mãe carinhosa, um pai atencioso, um irmão com quem você sempre pode contar ou até mesmo avós amorosos. Agora… E se essa dificuldade ou, melhor dizendo, dúvida fosse a respeito da sua identidade de gênero? Sua família ainda seria tão receptiva a essa questão?

Os “nascimentos” de Gabi Alice, Milena Madsen e Amanda.

“Meu pai era muito agressivo com essas questões, ele não aceitava… e, assim, ele tomava atitudes que me davam medo…” Essa frase foi dita por Milena Madsen, transexual e que trabalha em um call center da cidade de São Paulo. Gabi Alice, transexual e estudante de direito, também contou algo bem similar: “Durante a infância sofri muitos abusos e violência. Minha mãe se relacionava com um moço que era muito preconceituoso, então foi muito difícil. Eu era afeminada, as pessoas sabiam mas não aceitavam, eu não tinha apoio”.

“Eu fugi de casa pra vir pra cá [São Paulo], tive que fugir. Eu não tinha uma convivência com meu padrasto, nós brigávamos muito e ele era muito preconceituoso e homofóbico…” Essa outra frase foi dita por Amanda, também transexual e uma das acolhidas pela Casa Florescer, um centro de acolhimento que ajuda mais de trinta mulheres transexuais e travestis na cidade de São Paulo.

Histórias muito parecidas e que infelizmente se repetem milhares de vezes. Esse é o sentimento que se percebe ao tentar entrar um pouco na vida de mulheres transexuais. Salvo raras exceções, mudam-se os rostos, os nomes e os locais, mas não suas experiências de vida. Muitos podem olhar para suas infâncias com um sentimento nostálgico, um momento mais simples e mágico de suas vidas; um tempo em que brincadeiras com os amigos na escola pareciam ser os eventos mais importantes do mundo. Mas a infância para mulheres transexuais não costuma ter todo esse toque de “magia” e muito menos de simplicidade.

UM PASSO EM FALSO AO FUTURO

Nas escolas, é muito comum crianças e adolescentes começarem a sonhar com o próprio futuro. Ocupa-se a mente com reflexões a respeito de seus objetivos profissionais e acadêmicos. “Qual profissão seguir?” ou “Em qual faculdade entrar?” Enquanto boa parte dos estudantes pensa sobre essas questões, as transexuais passam suas vidas escolares perguntando se sequer vão completar o ensino básico.

Segundo dados levantados em 2018 pelo Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), estima-se que cerca de 0,02% de travestis ou transexuais estavam na universidade, 72% não possuíam Ensino Médio e 56% não completaram o ensino fundamental. Além disso, a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) levantou que estudantes transexuais representam apenas 0,1% do total de alunos de instituições federais de ensino superior.

“Do fundamental ao ensino médio não havia nenhuma pessoa trans comigo, o número em escolas é escasso. A transexualidade é muito marginalizada”, afirma Gabi.

“… as pessoas zoavam, mas eu também zoava e retrucava o bullying. Logo depois eu parei de estudar, não quis mais. Fui para o interior, tentei estudar lá, mas ali era mais pesado. Surtei na escola e disse que não precisava mais disso”, comentou Milena.

Porém, Gabi também enxerga com otimismo uma melhora nos dias atuais e crê que em um futuro não tão distante a inclusão de mulheres trans à educação será maior. “Hoje eu vejo uma mudança com o avanço da internet, a luta LGBT… Tem pessoas trans se assumindo durante a escola e não esperando terminar para criar coragem. Acho, sim, que já há um apoio das instituições e acho que daqui uns dez, quinze anos estaremos vivenciando outra realidade das jovens trans.”

SÃO PAULO: O MENOS PIOR DOS MUNDOS

Em busca de uma vida melhor em uma cidade grande, como São Paulo, mais diversa e pluricultural, a aceitação costuma ser maior do que em cidades pequenas, onde o conservadorismo é mais rigoroso.

Mantendo o otimismo, Gabi pensa na cidade de São Paulo com muito carinho: “Toda vez que eu vinha para SP eu ficava louca, sentia que precisava morar aqui. Tem um feeling que eu só encontro aqui, não tem em nenhum outro lugar. São Paulo, apesar dos seus problemas, é libertador para as pessoas. Nunca seria essa Gabi que sou hoje no interior. Lá não tem informação, não tem apoio, o preconceito é maior… Aqui eu posso sair na rua, me vestir como eu quiser e ninguém vai me reconhecer, já no interior… O problema de SP é o custo de vida e não é qualquer uma que consegue se manter, e aí entramos na questão da marginalização, o ciclo da prostituição e tudo mais”.

A cidade de São Paulo como um refúgio.

“Aqui é 1.000 vezes melhor. Minha cidade é muito preconceituosa, machista… Lá já vi gente morrer, não é bom pra se morar. Em relação a minha família só me relaciono bem com a minha mãe e irmãos/irmãs”, completa Amanda, que vivia em Juazeiro do Norte, no Ceará.

A DURA REALIDADE DAS RUAS

Com pouco apoio familiar e consequentemente sem acesso à escola, mulheres trans se encontram muitas vezes desamparadas. “…então quando você se assume, se a sua família não tem uma estrutura, ela vai te botar para a rua e você não vai querer saber de estudar… você vai se prostituir, ir para o mundo das drogas. A mulher trans sai nova de casa e cai no caminho errado. A opção mais comum é fugir de casa e buscar meios para se sustentar”, comenta Gabi.

Devido à exclusão no mercado de trabalho, o meio mais acessível é a prostituição. Segundo dados do Antra, 90% das pessoas trans no Brasil recorrem a essa profissão pelo menos em algum momento da vida.

Fonte dos dados: Antra e Rede Trans.
A sexualização das transexuais no país que mais mata trans.

Ainda sobre o tema, Gabi é clara: “A realidade é de prostituição e as meninas precisam continuar, pois senão elas não vão ter o que comer, é muito triste… As meninas vivem pedindo para mim alguma oportunidade de trabalho nos mais variados empregos, uma divulgação… Não falta mão-de-obra, elas querem trabalhar, mas o preconceito das empresas com as pessoas não deixa acontecer esse intermédio. A pandemia pra elas é coisa de TV, pois na realidade elas não podem parar, sabe? Infelizmente elas têm outros problemas com o que se preocupar, além da pandemia. Essa é a realidade das ruas com as pessoas trans”.

Milena: uma vida de medo.
Fonte dos dados: Repórter UNESP.

Essa relação estreita entre mulheres trans e a prostituição pode levar a um tópico muito importante: a violência. As mulheres trans ou travestis sempre foram vítimas de assassinatos em nosso país, mas em 2020 os números preocupam ainda mais. Segundo o Antra, o primeiro semestre de 2020, quando comparado com o de 2019, observou um aumento de 39% nos casos de assassinatos, indo de 64 para 89. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos.

“De alguns anos para cá a coisa está mais violenta, o presidente não tem papas na língua, tem um discurso racista, machista, homofóbico… E quem votou nele tem esse mesmo pensamento, ele foi eleito pelo ódio. A partir do momento que ele está no poder, as pessoas acham que podem fazer o que bem entender, então esses números não me chocam”, completa Gabi Alice

O país que fica marcado pelo ódio.

“Já sofri agressão física, verbal, até no emprego nós percebemos os olhares quando as pessoas não se sentem confortáveis com sua presença. Quando você é trans, uma coisa que você aprende rápido é entrar e sair nos lugares. Saber quando você é bem-vinda ou não. Uma coisa que você aprende também é a linguagem, certos tipos de pessoa você vai ter que falar de um jeito e com outras de outro jeito. Alguns homens vão achar que você está com algum interesse, que você está atraída por ele e nem sempre o mundo gira em torno do homem. Aliás, nenhuma trans pensa dessa forma, mas é o que a sociedade propaga”, comenta Milena.

MUITO MAIS DO QUE VIOLÊNCIA FÍSICA

A legislação referente às pessoas trans no Brasil ainda é recente. Em abril de 2016 houve o decreto que garantiu o reconhecimento do nome social na documentação. Já em março de 2018, tivemos a garantia de mudança do nome no cartório sem a necessidade de autorização judicial.

Em 2019, o STF (Superior Tribunal Federal), devido à ausência de legislação que proteja pessoas trans, tipificou transfobia e homofobia como racismo, colocando-as na mesma lei. Gabi Alice, que é estudante de direito, comenta como ela enxerga essa falta de representatividade trans em cargos públicos importantes.

Necessidade de mais representação.

DE MULHERES PARA MULHERES

Uma das discussões sobre o tema da invisibilidade da mulher trans é o papel que o feminismo deve ter. É normal ver conflitos entre integrantes do feminismo radical e a comunidade LGBTQI+ a respeito da inclusão das trans na luta diária pelo fim da opressão sobre a mulher.

Giovanna, jovem de 21 anos e integrante do movimento feminista, diz que, caso as mulheres trans sejam incorporadas ao movimento, é importante que elas tenham sua própria vertente dentro da luta.

“Eu acho que é importante, se a gente for acolher as mulheres trans no feminismo, ter uma vertente muito específica para elas. Acredito que não tem como juntar as pautas das trans e das cis, são opressões diferentes. Acho que não dá para trabalhar as duas pautas juntas, pois não vai ser eficiente. Se misturar as duas pautas a gente pode acabar cancelando outras. As mulheres transexuais sofrem mais violência de identidade de gênero, pelo fato de serem trans, já que estão tentando ser vistas como mulheres. As mulheres cis encaram outros problemas, como maternidade compulsória, que é inerente às mulheres cis. Acho que seria importante criar outra vertente. Além disso, creio que o transativismo é mais eficiente para as mulheres trans do que o feminismo em si. Não sei até que ponto o feminismo pode ser um suporte às mulheres trans”, comenta Giovanna.

Ao ser perguntada se ela entende que o feminismo radical pode ser considerado transfóbico, Giovanna acredita que é difícil traçar essa generalização. “Acho que tem muitas feministas radicais que podem ser transfóbicas, mas não acho que o feminismo radical em si seja. Na questão de entender que mulheres cis e trans são diferentes, não vejo como questão de transfobia e sim de analisar a realidade material das duas mulheres. É uma linha tênue, é fácil virar um discurso de ódio ou ser incompreendido.”

Por outro lado, a também feminista Arethusa pensa o tema com outros olhos. Por fazer parte do movimento interseccional do feminismo, ela acredita na inserção de todas as pessoas que se identificam como mulheres.

“Eu acredito que toda pessoa que se identifique como mulher tem o direito de participar do movimento feminista. Essas mulheres são oprimidas. Além de sofrerem transfobia, elas sofrem socialmente como mulheres. Se for uma mulher trans com passabilidade, vai sofrer os mesmos tipos de violência que mulheres sofrem, como assédio, tentativa de estupro… O mesmo sistema opressor que as mulheres cis sofrem elas vão sofrer”, comenta Arethusa.

Gabi Alice explica a passabilidade.

“Um movimento que não abre as portas para outros movimentos de minorias é um movimento segregacionista. Se você não tem uma vertente feminista que enxerga mulheres negras, trans, não binário, você está fechando suas portas para mulheres e aí está sendo segregacionista, indo contra o que o feminismo prega”, conclui Arethusa.

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Espaço para a produção dos alunos do 1º ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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