Entre as ruas e os aplicativos
Por Alexandre Kenzo, Daniela Soares, Diego Alejandro, Gustavo Dantas, Leonardo Clusella e Lucas Brito, alunos do 1°JOA
O sorriso fácil e covinhas acentuadas parecem não esmorecer mesmo após as seis horas entre idas e vindas de restaurantes à casa de clientes. O sábado ensolarado é como um dia qualquer para Luíza Rizzo, que das oito da manhã às dez da noite faz entregas por aplicativos. “A gente renuncia ficar com a nossa família, amigos, perto de quem a gente gosta”, relata a carioca que sonha em ser professora universitária. Aos 23 anos, Luíza está entre os 30,9 milhões de brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que fazem parte do mercado informal.
Uma análise dos últimos anos revela um cenário desfavorável para quem está à procura de emprego. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), o número de desempregados no Brasil aumentou em 3,6 milhões, entre dezembro de 2015 e junho de 2020, enquanto dados sobre trabalho informal apresentam uma queda de 5,2 milhões, durante o mesmo período. A crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus foi o principal motivador do aumento no número de desempregados. Em junho de 2020, quase 9 milhões de brasileiros deixaram de trabalhar. É a maior redução de pessoas ocupadas desde 2012. O resultado das atividades paralisadas causou, além de maior oferta de mão-de-obra, menos vagas até mesmo no mercado informal, que não goza de todos os direitos trabalhistas do formal.
A regulamentação desse setor passa por polêmicas. Adequar um trabalho atual em leis criadas em 1943 pode não ser a melhor solução para os desafios de quem trabalha com aplicativos. “É muito desumano nosso trabalho. É uma série de coisas que a gente tem que passar com relação a desrespeito em vários lugares”, comenta Luciana Kasai, porta-voz da organização entregadores antifascistas, mas que não enxerga na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) a possibilidade de mudança. “Teria que ser feito um debate nesse sentido, para que a gente possa assegurar direitos básicos. Ter, por exemplo, postos para a gente descansar, porque não temos lugar para usar o banheiro, tomar água, comer”, completa a entregadora.
As principais garantias da CLT fundamentam-se no princípio de garantir a proteção do trabalhador no mercado — este, regulamentado por intermédio do Estado. Os trabalhadores informais no Brasil não têm sequer garantidos os direitos de trinta dias de férias, seguro desemprego e salário mínimo, apenas para citar alguns exemplos importantes.
A insatisfação causada pela falta dessas seguridades resultou em duas paralisações de um dos maiores setores do mercado informal atual, os entregadores de aplicativo (como iFood, Rappi e UberEats). Os dias 1° e 25 de julho de 2020 serviram como palanque para denunciar situações que se tornaram ainda mais precárias devido à pandemia. As reivindicações variaram desde aumento no valor pago por entrega até licença remunerada para os profissionais que se contaminassem com a COVID-19.
O s desacordos, porém, parecem não desanimar Renato de Azevedo. A caminho do curso de teatro, o fotógrafo de 49 anos declara: “Descobri que amo esse trabalho. Consigo interagir com muitas pessoas numa troca de energia fantástica”. A nova ocupação ainda serviu para que ele descobrisse outra paixão: a dublagem. “Quase todos os dias alguém comenta da minha voz, perguntando se sou locutor ou radialista.” Pesquisando sobre o mercado de voz, o motorista de aplicativo descobriu a necessidade de possuir o registro de ator (DRT) para exercer sua outra nova profissão.
As múltiplas atividades também fazem parte da rotina de Samir Fekuri. Aos 63 anos, o comerciante divide seu tempo entre ser representante de uma metalúrgica, motorista de aplicativo e dono de uma empresa de confecção. Quem olha para o ex-dono de uma grande empresa têxtil não imagina que até em trabalho de parto já entraram durante uma de suas corridas. “Ela passou mal dentro do carro e , inclusive, a bolsa dela tinha estourado. Eu levei ela pro hospital de Santo André, acabei deixando ela lá e fui embora. Deve ter ganhado um nenê”, relata.
Apesar de possuírem percepções diferentes sobre o trabalho por aplicativo, Luíza, Luciana, Renato e Samir encontraram nele a chance de dar continuidade às suas vidas. Antes de se tornar entregadora, Luciana trabalhava em cozinhas e estúdios de tatuagem. A nova fonte de renda, no entanto, não foi sinônimo de estabilidade financeira. Diferente da sua atual colega de profissão, Luíza, Luciana volta várias vezes ao dia para sua casa por conta de problemas para carregar seu celular. “Eu ‘tô’ sem dinheiro pra comprar um carregador portátil, ‘tô’ com um carregador que me foi doado, mas ele é bem fraquinho, não aguenta muito tempo. Então, eu tenho que fazer essa ‘ida e volta’, conta a moradora do Campo Limpo, em São Paulo.
Para conseguir pagar a passagem e fazer sua bolsa de estudos na China, Luíza começou a fazer entregas em aplicativos. Na volta, mesmo sendo técnica em turismo e cursando pedagogia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ), a falta de empregos a colocou de volta nos aplicativos. Ganhando quatro reais em média por entrega, de bike, Luíza estima que roda entre 110 e 130 quilômetros por dia em suas corridas. Nas horas que não trabalha, a entregadora dedica seu tempo para finalizar seu curso universitário com uma monografia sobre a pedagogia Waldorf.
Antes mesmo de ingressar, de fato, no mercado de trabalho, o estudante de engenharia Mateus Fonseca, 21 anos, já faz parte dos entregadores de aplicativo, e tece algumas criticas ao trabalho. Segundo ele, é uma questão de uma “falsa liberdade” para os que realizam essa profissão. “Os trabalhadores que falam que não querem CLT são os que acham que vão receber menos com a CLT, o que não é verdade, ou os trabalhadores que querem controlar o horário que estão trabalhando — só que não dá para eles controlarem o horário que eles estão trabalhando com um salário tão baixo como está hoje” , afirma o jovem do Distrito Federal e que também encontrou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) um lugar para lutar pelo que acredita.
As críticas parecem narrar os mesmos conflitos vividos por Luíza. Além de pagar suas próprias contas, a entregadora ainda ajuda sua avó, que perdeu o companheiro recentemente. “Uma vez eu fiz uma entrega que demorou quase duas horas para ser realizada e eu não sabia quanto ia ganhar no final. E eu recebi R$ 3,50”, relata a técnica em turismo, que não pode recusar as corridas por medo de boicote pelo aplicativo. “Eles [aplicativos] querem que você fique sempre disponível”, ela completa.
Mesmo com objeções parecidas com as de Luíza, Samir não enxerga alternativas. “Ninguém me emprega pra um trabalho fixo em um lugar. Eu tenho estudo qualificado, mas, mesmo assim, as pessoas olham mais pela idade”, desabafa o motorista, que desde jovem tentou seguir a tradição da família no comércio.
O desrespeito também é outra reclamação recorrente dos trabalhadores. “A galera trata a gente mal, tanto porteiro quanto cliente, muitas vezes o cliente quer que a gente suba pra deixar a comida, sabe? O que que custa você descer?”, questiona Luciana, que antes de participar dos entregadores antifascistas já frequentava grupos anarquistas e coletivos feministas. “Ele [cliente] pede pra subir ou eu tenho que fazer cadastro na portaria, então, assim, é isso, eu gasto um tempo do caralho pra ganhar cinco conto”, ela finaliza.
Para Luíza, se trata de uma profissão “tão invisibilizada quanto os garis” e com problemas que ultrapassam a responsabilidade das empresas de aplicativo. “Aqui no Rio tem corredor de ônibus, por exemplo. O certo para o ciclista é andar do lado direito da rua. Só que se eu andar na direita vou ser atropelada por causa do corredor, o ônibus vai me levar junto”, conta a entregadora, que elegeu o trânsito uma de suas principais preocupações.
Caso os entregadores ou motoristas sofram algum acidente, não existe qualquer reparação oferecida pelos aplicativos. “Você passa por muitos perrengues na rua, e, às vezes, você não tem uma saída. Por exemplo, às vezes você sofre um assédio de uma pessoa, tem um cara que te trata muito mal, dentro do carro, que você acha que vai ser assaltado”, diz Samir, que muitas vezes já se questionou se chegaria vivo em casa enquanto passava por bairros com altos índices de violência.
Além dessas preocupações, Luíza e Luciana ainda enfrentam o machismo dentro e fora dos aplicativos. Entre uma entrega e outra, enquanto espera o pedido ficar pronto, Luíza não escapa de todo tipo de cantada de entregadores, estabelecimentos e clientes. “ Ele falou para eu entrar e eu falei que não. Ele tentou me puxar para dentro do apartamento dele e eu saí correndo pela escada de emergência”, define Luíza como um dos piores episódios durante uma entrega.
Os assédios, no entanto, nem sempre acontecem de forma tão explícita. “Se eu estou em cima da bike assim e paro pra olhar o caminho, às vezes, vêm uns caras me abordar tipo ‘ah, você tá perdida?’, esse tipo de coisa”, conta Luciana.
Tão complexo quanto lidar com o mercado de aplicativos é tomar a iniciativa de se inserir nele, principalmente quando se trata de jovens com pouca ou nenhuma experiência. Pedro Ayres, estudante de administração de 19 anos, juntou-se a alguns colegas para tornar um simples projeto de faculdade em realidade. “Nós tínhamos uma matéria de gestão e empreendedorismo e, nela, precisávamos modelar uma startup que teria potencial para virar um unicórnio, ou seja, uma startup que atinge o valor de mercado de um bilhão de dólares”, conta o jovem sobre o surgimento da empresa.
O aplicativo dos universitários, batizado Serv, tem a ambição de inovar o mercado. Mas desenvolver um aplicativo e começar uma startup em um nicho de constante ascensão não parece ser uma tarefa fácil. A Get Ninjas, referência no segmento, é a maior empresa da categoria na América Latina, contando com mais de 500 mil profissionais cadastrados e atuando em mais de 3 mil cidades brasileiras e em parte do México. Os universitários, porém, alertam sobre os diferenciais em relação aos demais apps: “Tem que pagar uma taxa alta para ter contato com o cliente e tem que chamar eles no Whatsapp, isso não proporciona muita segurança. Como nossa proposta é simplificar o jeito de contratação, fizemos uma área de usuário com uma interface básica, uma área para o cliente acompanhar o prestador de serviço e vice-versa e um chat para ter conversas seguras dentro do aplicativo e que não fujam do nosso controle, passando segurança tanto para o contratador quanto para o contratado”.
O mercado de aplicativos que oferecem prestações de serviços variados, de fato, cresceu muito nos últimos anos. A gig economy, expressão refinada para o conceito de trabalhar como prestador em apps ou como freelancer, serviu como fonte de renda primária para 5% dos trabalhadores brasileiros, de acordo com dados de 2018 do Boston Consulting Group. Foi com base na inserção em um mercado atrativo que os universitários decidiram seguir no ramo de aplicativos que oferecem trabalhos autônomos: “Fomos dar uma olhada nos mercados mais populares do Brasil, passando desde moda, pesca e agronomia até contratação de serviços gerais”. Ainda segundo Pedro, o segmento de contratações de autônomos carece de inovações: “A gente achou [no mercado de serviços gerais] uma grande defasagem de inovação em relação aos outros setores, porque fizemos pesquisas e a maioria das contratações de pedreiros e eletricistas é feita pelo boca a boca, uma coisa muito primitiva, principalmente com a presença da internet”.
Diversos fatores impulsionaram o crescimento do download dos aplicativos. As plataformas oferecem cada vez mais opções de serviços e simplificam tarefas do dia a dia, muitas vezes possibilitando que outras pessoas realizem essas mesmas tarefas por você. Os funcionários vão ao supermercado e farmácia, realizam entregas de uma residência para outra, reparos no seu telefone e até tarefas domésticas. Conforme o tempo passa, mais possibilidades de serviços são adicionada à interface dos apps, fazendo da praticidade oferecida através de alguns toques parte da rotina das pessoas e, consequentemente, proporcionando uma mudança significativa nas nossas vidas sem que nem percebamos. A presença de mochilas e jaquetas coloridas dos entregadores nas ruas e as mudanças nos nossos hábitos de consumo são exemplos de transformações marcantes.
Naturalmente, o novo cotidiano da população foi acompanhado por um crescimento astronômico das empresas de aplicativos. A colombiana Rappi, referência do setor, foi fundada em 2015 e, com apenas três anos de existência, atingiu o valor de mercado de um bilhão de dólares. A transição está acontecendo diante dos nossos olhos, estamos cada vez mais perto de uma nova composição econômica e social em que os aplicativos são elementos essenciais. Trabalhadores lutam por seus direitos, jovens buscam entrada no mercado e cada vez mais surgem histórias como as de Luíza, Luciana, Renato, Samir, Mateus e Pedro.