Diversidade e inclusão no mundo da moda

Laboratório de JO 2020
12 min readNov 16, 2020

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Por Isabelle Aradzenka, Luisa Cardoso e Melissa Coelho, alunas do 1° JOC

Nascida e criada em Minas Gerais, Stephanie Marques traz consigo lembranças de situações de sua infância que 76% da população brasileira nunca imaginou passar. A bela moça de cabelos ruivos, hoje com 24 anos e formada em direito, nasceu com Displasia Óssea Espôndilo Epifisária Metafisária, deficiência que consiste em alterações na formação da coluna e de suas extremidades.

Diferentemente do que a visão capacitista que pessoas sem deficiência possuem de Stephanie, a maior dificuldade que a jovem de um metro de altura enfrenta na sua vida não é lidar com a sua deficiência, mas justamente com o olhar preconceituoso em relação a ela. No mundo da moda isso não é diferente.

À medida que Stephanie amadureceu e entrou em sua fase adulta, a busca por roupas que lhe agradassem se transformou em uma tarefa cada vez mais árdua. Sua baixa estatura e seu corpo fora do padrão da moda tradicional muitas vezes a levaram para seções infantis, onde se deparava com peças que não lhe satisfaziam.

Stephanie sentada em uma mureta ao mesmo tempo que posa para foto. A moça está vestindo uma camisa clara e calças pretas.
Stephanie Marques. Foto: reprodução/Instagram @tephmarques

“Na pré-adolescência e adolescência muitas vezes ficava frustrada por não conseguir encontrar ou me encaixar nas roupas e no padrão que são impostos. Sempre me infantilizam e esperam que eu aceite, mas quando eu me imponho contra ficam surpresos. A minha maior dificuldade foi conseguir me impor dessa forma, mas com um tempo eu soube me expressar como queria e isso me ajudou a ser meu próprio padrão.”

Como se não bastasse o olhar de infantilização das pessoas e, principalmente, da moda à sua volta, a falta de representatividade assolou Stephanie por muito tempo.

“Nunca me vi representada em nenhum lugar, nunca vi uma pessoa com deficiência em quem eu pudesse me inspirar. Pelo contrário, as pessoas sempre fizeram questão de mostrar e apontar que meu corpo não se encaixa no padrão e por tempos ouvi que era um tipo de ‘aberração’. Felizmente não me deixei ser atingida por essas falas e criei o meu próprio padrão, fui entendendo meu corpo, meus gostos e meu estilo, e assim continuo até hoje.”

Não somente os 45 milhões de brasileiros que portam alguma deficiência física, mas diversas minorias possuem extrema dificuldade em se relacionar com o mundo da moda ou se sentirem totalmente aceitos dentro desse meio.

“Não existe na moda e no padrão imposto pelas mídias uma diversidade de corpos totalmente naturalizada. Algumas minorias começaram a receber mais atenção, como por exemplo o Plus Size, mas outras minorias, como corpos de pessoas com deficiência, ainda continuam excluídas e marginalizadas. O que falta para tornar esse meio mais incluso é a abertura no olhar para todas as minorias e diversidade de corpos existentes. As marcas e todos os envolvidos no mundo da moda não reconhecem pessoas com deficiência como público significativo e que consome os produtos deles, e o resultado disso é uma exclusão final. No Brasil [de acordo com dados do IBGE], PCD representam 24% da população e mesmo assim não vemos essa inclusão.”

Sendo um nicho de mercado tão rico e interessante, a experiência de Stephanie faz questionar os motivos que levam a diversidade de corpos no mundo da moda ser tão inexpressiva. Por que os padrões dominam este meio? Qual o motivo por trás da falta de representatividade das minorias?

A o ser questionada sobre padrões, Maria Helena Pires, estilista de 27 anos e dona da recém-criada marca Mahe — voltada, atualmente, para a moda tradicional —, relata:

“Antes, a função de uma modelo de passarela era ser um cabide para as roupas e para que os críticos e analistas de moda que estivessem assistindo ao desfile avaliassem e apreciassem exclusivamente a peça. Para que a roupa se destacasse e o caimento fosse ‘impecável’ não se poderia representar os corpos, mas sim apenas as peças que estariam sendo expostas no desfile, por isso a exigência de modelos altas e extremamente magras.”

Maria Helena. Foto: reprodução/Instagram @wlmahe

A visão mais técnica da empreendedora pode esclarecer a origem do emprego de padrões no meio, mas será que esse pensamento continua prevalecendo?

“Com o tempo e muito estudo de mercado, as pessoas envolvidas na moda foram percebendo que o público quer representatividade nas marcas e que elas tivessem a diversidade de corpos atuando em passarela e em campanhas publicitárias. O fato é que hoje em dia as marcas que não estão se reinventando e ainda mantêm padrões estéticos e que não representam corpos ‘reais’ estão sendo boicotadas pelo público, como foi o caso da Victoria Secrets. Isso fez com que nós, iniciativas que estão entrando no mercado, tenhamos um olhar mais clínico para esse tipo de exigência das consumidoras. As pessoas querem e buscam representatividade e isso deve ser atendido por todas as marcas.”

Atuando no nicho de Slow Fashion — moda voltada para produção em baixa escala a partir de materiais sustentáveis — , Maria Helena pondera sobre a abertura de sua produção para públicos diferentes dos que a estilista está acostumada.

Modelo para a Mahe. Foto: reprodução/Instagram @wlmahe

“Como estilista eu gostaria de criar muita coisa para muitos públicos, mas até mesmo a nossa grade de medidas vem se moldando conforme nossa demanda. No começo da marca, quase não vendíamos tamanho Grande, resultando em muita sobra de estoque, e por isso tivemos que diminuir nossa produção de peças maiores. Conforme a demanda foi crescendo nesse tamanho, começamos a produzi-las novamente. Em uma coleção é necessário muito planejamento antecipado e tiramos como base para a confecção experiências de resultados de vendas de coleções anteriores para não termos desperdício.”

Mesmo que a padronização do corpo na moda seja bastante presente no nosso dia a dia, o fenômeno está lentamente deixando de ser o cruel arquétipo branco, magro e alto, já que esse é um assunto frequentemente debatido pelos diferentes corpos que existem na sociedade e que por muito tempo foram ignorados pela moda.

A luta pela inclusão na moda é um símbolo profundo de ressignificação. Tendo isso em mente, Heloísa Rocha — jornalista e mulher que nasceu com a rara doença genética Osteogênese Imperfeita — fundou a página Moda em Rodas, que busca atuar pela causa através do Instagram.

Heloisa Rocha. Foto: reprodução/Instagram @modaemrodas

“A Moda Em Rodas surgiu a partir de uma vontade pessoal em criar um projeto próprio com a inquietação da falta de representatividade do corpo com deficiência nas editorias, nos desfiles e nos perfis e canais de moda. A percepção dessa ausência surgiu nas muitas coberturas que, como jornalista, realizei no São Paulo Fashion Week e da abordagem de mulheres com deficiência em meus perfis pessoais me pedindo dicas de moda. Inicialmente, eu pretendia atingir somente o público com deficiência. Hoje, por falar de moda, representatividade e autoestima, eu acabei ampliando o meu leque e abraço todas aquelas pessoas que gostam do tema e estão cansadas dos antigos padrões de beleza impostos pela mídia e pela indústria da moda e que, infelizmente, são replicados por muitas blogueiras e celebridades.”

Mesmo sendo atuante na causa, Heloísa desabafa que o profissional com deficiência não é valorizado no Brasil, trazendo grandes frustrações não só para ela, mas também para todos os que desejam se sentir representados.

Heloisa Rocha. Foto: reprodução/Instagram @modaemrodas

“Poucas marcas que se interessam em investir na minha pessoa como modelo ou, especialmente, como produtora de conteúdo. Hoje nem tanto, mas por muitos anos fui convidada para dar palestras, modelar ou prestar consultoria de graça, pois, infelizmente, o profissional com deficiência não é valorizado no Brasil. Ainda existe a cultura de que quando você convida uma pessoa com deficiência para um trabalho é um ato de solidariedade e voluntarismo. Assim como no mundo sem deficiência, as empresas buscam modelos com deficiências leves e padrões europeus: loira, branca e alta.”

Durante seus cinco anos de dedicação à página, Heloísa observou pequenas mudanças no ramo da Moda Inclusiva, mas, infelizmente, ainda lida com a incapacidade do meio de abrigar de modo integral pessoas com deficiência.

“Hoje, as pessoas falam mais sobre o termo moda inclusiva e a sua importância, mas poucas ações práticas são vistas. O mercado de marcas que confeccionam peças para as pessoas com deficiência é muito pequeno comparado à sua demanda. Só para você ter ideia, existem mais marcas de roupas para PETs do que para as pessoas com deficiência no mundo. O e-commerce e as lojas físicas não estão adaptados a receber um cliente com deficiência e os vendedores não são treinados para nos atender. O aluno de moda não é verdadeiramente incentivado a trabalhar com corpos diversos e praticamente todos os trabalhos universitários produzidos em prol da moda inclusiva não saem da teoria. Enfim, eu posso dizer que o problema vai desde a elaboração até a comercialização.”

Totalmente estampados e fixados em nossas mentes, os padrões nitidamente não agradam a todos. A moda precisa ser multifuncional e adaptável, a diversidade grita por mudança e aos poucos páginas como a de Heloísa devem se multiplicar e ocasionar uma maré de revoluções neste meio.

Heloisa Rocha. Foto: reprodução/Instagram @modaemrodas

“Quando criei o Moda Em Rodas, eu jamais pensei no alcance que iria ter e nem o quanto iria aprender sobre o universo da moda inclusiva e/ou diversa. Sinto que me desenvolvi demais como profissional e como pessoa. Conheci histórias incríveis e tenho aprendido diariamente sobre o universo da inclusão e acessibilidade. Olhando para cinco anos atrás, eu, certamente, sou uma pessoa muito mais aberta a este e outros universos, como o movimento plus, preto, sustentável e LGBTQIA+. Eu gostaria de poder reforçar e expandir cada vez mais a marca Moda Em Rodas, especialmente os seus três pilares (moda inclusiva, autoestima feminina e um novo olhar da pessoa com deficiência na mídia). Em resumo, eu gostaria de reduzir cada vez mais essa imagem de blogueira (leia-se: os looks do dia) e me tornar uma produtora de conteúdo e consultora em moda e comunicação inclusiva. Não anseio em lançar uma grife do Moda Em Rodas, mas não descartaria uma collab com uma grande empresa.”

Sendo uma inciativa de Heloísa, a página nos leva a refletir sobre o espaço que a moda inclusiva ocupa fora do meio digital. Motivada a criar o IG pela falta de inclusão e diversidade de corpos nos grandes eventos de moda, após cinco anos o cenário mudou?

A primeira Mostra de Moda Inclusiva foi concebida somente em 2019, um pequeno alívio àqueles que desejam se sentir representados. Entretanto, longe dos círculos oficiais, pequenos eventos destinados à diversidade ocorrem há mais tempo e são referência para o ramo da Moda Inclusiva.

Quer saber mais sobre o nicho? Confira a cobertura do Osasco Fashion Week, um importante ator na luta pela diversidade e inclusão no mundo da moda.

Osasco Fashion Week — Porque a moda é para todos

N a ensolarada quinta-feira do dia 12 de março de 2020, o Edifício Ramada Hotel, localizado na movimentada Avenida dos Autonomistas, no centro da cidade de Osasco, diferentemente dos demais dias de sua existência, agora encontra sua entrada principal totalmente preparada para abrigar a 3ª Edição do luxuoso evento de moda e seu agitado público composto de modelos animadas, parentes orgulhosos, estilistas preocupados e apreciadores de moda totalmente tranquilos — o Osasco Fashion Week.

Após uma espera de vinte minutos, a sala principal do requintado prédio de 16 andares enfim abre as portas para o público inquieto. Logo que os primeiros sapatos encontram o chão daquele cômodo de paredes brancas e piso em madeira clara, os fotógrafos, que antes se encontravam dispersos pela sala papeando uns com os outros sobre os mais diversos assuntos, agora correm para reivindicar um pequeno espaço na frente da passarela. Assim que todos estão acomodados, uma animada batida de música dá início ao desfile.

Modelo para o Osasco Fashion Week . Foto: reprodução/Instagram@osascofashionweek

Diferente do que o imaginário do público fomentado pela tradicional publicidade de moda esculpe — homens e mulheres de corpos magros e eretos, com pernas extremamente longas e aspecto quase que plastificado —, a primeira modelo a encarar a passarela é uma baixa e graciosa moça acompanhada de um pequeno e enfeitado bastão que auxilia em seu equilíbrio.

Com seu andar irregular e seu sorriso contagiante, a jovem abre o caminho para os outros onze modelos totalmente diferentes entre si neste envolvente desfile que faz uma pequena amostra do que o evento OSFW propõe.

Confira algumas fotos:

Modelos para o Osasco Fashion Week. Fotos: Luísa Cardoso

Em seus quatro dias de duração, o Osasco Fashion Week — idealizado por Rodrigo Dantas, que aliás também é irmão mais velho do MC Guimê e o convidou para um show exclusivo no último dia do evento — apresentou mais de 85 desfiles que, apesar de ostentarem trajes e modelos totalmente destoantes entre si, coincidem em seus propósitos: participar ativamente na inclusão da diversidade física no mundo da moda e afrontar os padrões quase que inquestionáveis do meio.

Simone Urbano, palestrante e ativista social nos momentos triviais, nos quatro dias do ensolarado mês de março em que o OSFW ocorreu tornou-se também modelo para o evento. Quando chegou sua hora de brilhar, a mulher com a rara doença genética Osteogênese Imperfeita atravessou a passarela em sua cadeira de rodas com tamanha confiança e alegria que possibilitou que aquele rápido instante transmitisse a mensagem que todos os modelos, estilistas e organizadores ali presentes desejam levar ao grande público: a moda é e deve ser para todos.

Angélica, Simone e Grace. Foto: reprodução/Instagram @osascofashionweek

Simone foi uma das dez modelos do desfile da marca Angel’s Grace Moda Inclusiva. A empresa, voltada exclusivamente para a confecção de trajes para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, nasceu em 2017 pelo trabalho em conjunto das co-fundadoras Angélica Pontes e Grace Santos. Na busca por atuar em um nicho de mercado tão rico, mas muitas vezes mal explorado, a dupla volta sua confecção para todos os tipos de corpos, como conta Grace.

Grace Santos sobre a marca Angel’s Grace Moda Inclusiva

Inserida nesse meio há mais de três anos, Grace observa que a diversidade é muitas vezes irrelevante para marcas tradicionais e, se trabalhada em campanhas, o foco não se volta para promover a inclusão.

Grace Santos sobre a diversidade no mundo da moda

Participando no Osasco Fashion Week pela primeira vez, o desfile da Angel’s Grace se destacou pelo emprego de modelos com deficiências ou mobilidade reduzida em todas as peças exibidas.

Grace Santos sobre o Osasco Fashion Week
Modelos para a marca Angel’s Grace Moda Inclusiva. Fotos: Luísa Cardoso

Além de Grace, o evento abrigou diversos outros estilistas cheios de personalidade e que buscam pelo mesmo objetivo: a inclusão. Confira algumas de suas marcas e seus desfiles:

Muka

Murilo Freitas em seu desfile para o OSFW. Foto: Luísa Cardoso

Fundador da Muka, Murilo Freitas ingressou no mundo da moda aos 10 anos como modelo. Desfilava para marcas de São Paulo e se tornou o primeiro modelo brasileiro com síndrome de Down a desfilar na Europa.

Após essa breve jornada como modelo, teve a ideia de criar a marca Muka, desenvolvida e pensada com o propósito de mostrar que as pessoas com deficiência podem participar, sem distinções, de todo e qualquer evento. As peças se encaminham para o estilo Slow Fashion e são confeccionadas de maneira sustentável.

Modelos para a marca Muka. Fotos: Luísa Cardoso

Bruno Back

Bruno Back. Foto: reprodução/Instagram @brunobackestilista

A marca Bruno Back nasceu em 27 de agosto de 2014 com o objetivo de unir conforto e beleza para todos os tipos de corpos e idades. O estilista paulistano já foi destaque em diversos desfiles Plus Size, como na 19ª Fashion Weekend Plus Size.

Back trouxe para o OSFW o seu desfile — também apresentado em agosto de 2019 na FWPS — inspirado na boneca Barbie, a fim de demonstrar que não é preciso ser magra para ser uma “boneca”.

Modelos para a marca Bruno Back. Fotos: Melissa Coelho

Já se preparando para sua quarta edição em 2021, o evento Osasco Fashion Week é referência no meio da Moda Inclusiva e uma porta para aqueles que desejam conquistar um espaço nesse mercado.

Empregados de maneira quase que ingênua nos grandes desfiles, os padrões no meio da moda lentamente dominaram a mentalidade das indústrias e, ainda hoje, impactam a vida daqueles que não se encaixam.

A inclusão de corpos diversos não é somente um fator importante, mas um direito básico àqueles que por tantas vezes foram ignorados. Assim como Stephanie, Heloísa, Simone e Grace exigem, a diversidade deve ser respeitada e tratada de forma natural, especialmente no mundo da moda.

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Espaço para a produção dos alunos do 1º ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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