A volta dos drive-ins durante a pandemia

Laboratório de JO 2020
10 min readNov 16, 2020

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Por Amanda Moraes, Camila Nascimento, Isadora Noronha e Julia Queiroz, alunas do 1º JOB

Você já pensou em se formar dentro do seu próprio carro? Imagine: sua escola anuncia que a cerimônia não irá acontecer. Três árduos anos de ensino médio, e o aguardado momento de pegar o diploma enfrenta mais uma prova: uma pandemia. A insatisfação é unânime, mas a formatura não pode acontecer. Mas a solução, por fim, aparece, e a salvação repousa sobre quatro rodas. Participar de uma cerimônia de dentro do carro é a opção escolhida, e o que antes te deixava como espectador agora te faz participante.

Foi o que aconteceu com Valentina Foresti, aluna da Escola Americana de Brasília (DF). No dia 30 de maio de 2020, a formanda vestiu a beca e o capelo e entrou em seu próprio carro em direção ao Cine Drive-In. Em outros dois carros, encontravam-se seus familiares para presenciar o momento. As vagas foram divididas previamente por sorteio, o ambiente foi decorado com balões e homens vestidos de palhaço se empenhavam em tornar a situação mais divertida.

Valentina Foresti dentro de seu carro durante sua formatura / Imagem: Arquivo Pessoal

Confira abaixo as impressões de Valentina sobre o evento:

Esse formato inusitado foi a solução que a escola de Valentina encontrou para realizar a cerimônia em meio à pandemia do novo coronavírus, sem aglomeração e evitando o contato próximo entre os estudantes. Por esse mesmo motivo, o sistema drive-in voltou a ser utilizado em várias atividades em 2020, e tornou-se a saída para adaptar diversos eventos.

A trajetória do drive-in: origens, crise e a volta do modelo

A ideia desse sistema surgiu originalmente a partir do cinema. Seu primeiro registro foi na cidade de Las Cruces, no México, por volta de 1915, porém ganhou maior popularidade nos Estados Unidos, alguns anos depois. O primeiro Cine Drive-in do país surgiu em 1933, na cidade de Canden, em New Jersey. O sistema foi desenvolvido por Richard Hollingshead, após reclamações da sua mãe, que não se sentia confortável nas poltronas dos cinemas. A invenção recebeu o nome de Park-In Theather, mas, somente em 1949, quando a patente de Hollingshead foi revogada, os cines drive-in se popularizaram.

Olivia Newton-John e John Travolta num drive-in, em cena do filme “Grease: Nos Tempos da Brilhantina” (1978). Imagem: Reprodução/IMDb

Essa nova forma de assistir filmes teve seu auge nos anos 50 e 60. No Brasil, foi apenas no fim da década de 50 que os cinemas ao ar livre surgiram, sendo o mais tradicional deles o Cine Drive-in em Brasília. Inaugurado em 1973, ele funciona até hoje, e é onde foi realizada a formatura de Valentina. Contudo, a partir da criação das salas de cinema, do VHS (Video Home System) e de outros serviços como a Netflix, o brilho do cinema drive-in foi ofuscado e ele gradativamente perdeu sua popularidade.

Desde o início de 2020, porém, o mundo foi tomado pela pandemia da Covid-19, o que impediu as aglomerações e prejudicou o setor cultural. Para que a economia desse ramo não desabasse, o sistema drive-in voltou a ser considerado como uma maneira de garantir o entretenimento de forma segura. Com a extensão do período de pandemia, o uso do sistema drive-in também foi expandido, e o que antes era apenas nostálgico voltou a ser uma tendência.

Dessa forma, outras situações que causariam aglomerações também foram adaptadas para seguir com as regras de quarentena. Ao longo de 2020, foram registrados formaturas, missas e até casamentos com o modelo drive-in.

Uma troca de alianças nada convencional

Com preparações para o casamento a todo o vapor, Anna Gabriely Fonseca, 21 anos, e seu noivo Vinícius Meneguzzi, 26, se depararam com a possibilidade de terem seus sonhos adiados. A cerimônia já vinha sendo planejada há mais de um ano, porém, devido à pandemia do coronavírus, o casal precisou repensar a celebração. Cogitaram adiar ou até cancelar o casamento quando perceberam que não seria possível fazê-lo da forma que queriam. Entretanto, encontraram no sistema drive-in uma forma de realizar a cerimônia que por tanto tempo desejavam.

Anna Gabriely é estudante de Direito da Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande (MS) e, ao notar o retorno do drive-in durante a pandemia, teve a ideia de adaptar seu casamento para o modelo. Além do cinema, seu tio, que é pastor em Brasília, também passou a realizar cultos com essa técnica. A partir disso, ela começou a refletir sobre a possibilidade de fazer o casamento ainda este ano de uma forma segura para todos.

A cerimônia, que originalmente ocorreria no dia 6 junho, foi transferida para 4 de julho e realizada numa chácara própria para eventos. “O nosso caso foi um diferencial, eles nunca haviam feito algo assim lá. A chácara foi escolhida justamente por ter mais espaço e para poder comportar todos os veículos com a distância necessária. Foram cerca de trinta carros, em torno de setenta convidados, cada um somente com a sua família dentro do carro”, ela conta. Como não poderia ser feito um jantar tradicional, a equipe cerimonial que haviam contratado entregou caixinhas com aperitivos, como antepastos e torradinhas, para todos os convidados. Além disso, cada caixinha continha um vidrinho de álcool em gel de brinde e um manual de instruções sobre o evento. Seguindo marcações feitas no chão, o cerimonial indicou onde cada carro seria posicionado para que todos pudessem enxergar a celebração.

“A cerimônia em si foi realizada de forma tradicional, com a entrada da noiva e do noivo. Só ficaram pra fora dos carros meus pais, meus sogros e minha cunhada, mas mantendo a distância e todos de máscara”, relata Anna. Um grande diferencial da festa foi a aquisição de um totem com a imagem dos noivos em tamanho real para que os convidados pudessem tirar fotos com eles sem colocar ninguém em risco. Era localizado numa área mais afastada da chácara e apenas uma família por vez poderia se direcionar ao totem para registrar o momento. Assim, todos teriam uma recordação do casamento.

A celebração não foi demorada, começou às 16 horas e durou por volta de uma hora e meia. Apesar de precisar adaptar o casamento dos sonhos, a noiva se surpreendeu com o quanto aproveitou a festa. “Eu, particularmente, gostei muito desse modelo de como foi a cerimônia, porque nunca tinha visto nada parecido. Eu acredito que foi algo muito mais intenso para mim e para todos os convidados do que se fosse algo tradicional.”Anna confessou que estava apreensiva no começo, porém não se arrependeu da sua escolha: “Foi mais incrível do que eu imaginava, eu estava com medo de não dar conta de fazer algo tão diferente, mas no final fiquei muito grata. Se fosse pra fazer de novo acho que eu até faria nesse mesmo modelo”.

Os convidados do casamento de Anna Gabriely e Vinícius acompanharam a cerimônia de dentro de seus carros / Imagem: Willian Matos/Reprodução: Uol

A única coisa que fez falta foi o contato físico: “Por se tratar de um momento muito pessoal e emocionante pra mim, eu queria, sim, poder abraçar, dançar e curtir como num casamento tradicional. Mas não coloco isso como ponto negativo particularmente do modelo drive in, mas do momento que nós estamos vivendo”. Ela não teve reclamações sobre o modelo, acredita que apenas a questão da visibilidade foi complicada, pois os carros precisaram ser posicionados de uma forma muito estratégica para que todos pudessem enxergar a cerimônia.

Em relação aos convidados, a noiva contou que estavam muito curiosos sobre a experiência.

“Tinha muita incerteza se ia funcionar mesmo e se ia ser algo interessante. Mas, no final das contas, todo mundo gostou muito, todo mundo fez elogios em relação à organização e à cerimônia em si. Foi algo que a gente conseguiu viver mesmo passando por tempos difíceis.”

Mesmo com os obstáculos da pandemia, o casal conseguiu seguir com seus sonhos, que estavam planejando há tanto tempo. Apenas a lua-de-mel não escapou desse contexto, e precisou ser cancelada. A viagem seria para os Estados Unidos, mas eles ainda pretendem fazê-la quando tudo estiver melhor.

A fé em reinvenção

Além da celebração de casamentos, cerimônias religiosas também marcaram presença nessa restauração do modelo drive-in. Num espaço a céu aberto e fora da área urbana em Olímpia (SP), cidade distante cerca de 450 quilômetros da capital, sempre às 7h30 dos domingos, a fé se reinventa na Paróquia São José, uma das primeiras a realizar uma missa drive-in no país. A primeira edição, promovida em maio para o Dias das Mães, trouxe uma experiência positiva tanto para os fiéis quanto para a paróquia, e levou à realização de mais missas durante o período de quarentena.

Ivanaldo Mendonça, pároco responsável da São José, relata que a cerimônia foi a maneira encontrada de não transgredir as normas impostas por autoridades devido à pandemia e ao mesmo tempo difundir a fé católica para os fiéis nesse período.

“Os interessados devem fazer cadastramento prévio na secretaria da Paróquia São José, tendo em vista o limite do espaço que pode acolher, no máximo, até 100 veículos. Feito o cadastramento, os participantes recebem um folheto com orientações a respeito da participação na missa, que conta desde o horário de chegada, ao uso de equipamento de proteção (máscara, álcool-gel etc.).”

Além disso, os ocupantes do veículo devem estar no mesmo núcleo de convivência, e todos os voluntários envolvidos na celebração são também orientados, obrigatoriamente não podendo pertencer ao grupo de risco.

Aos participantes das missas, é pedida sempre a doação de alimentos não perecíveis a serem repassados às pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade social atendidas pela paróquia. Quanto à adesão, o padre Ivanaldo conta que foi surpreendente: “Os fiéis responderam e continuam a responder positivamente à proposta. Tanto que aumentamos uma missa por mês e, desde setembro, implantamos duas missas no formato drive-in no período noturno”. O pároco ainda relata que a cerimônia tornou-se uma oportunidade de manter a fé durante o período difícil da pandemia, e a Igreja, “ como sinal de esperança, bênção e paz”, consegue se fazer presente por meio do drive-in, mesmo que de maneira diferente da usual.

“ A experiência possibilita, também, a renovação das esperanças e o fortalecimento da fé em tempos difíceis, assim como o fortalecimento da comunidade paroquial. De forma criativa, sem transgredir as medidas impostas pelas autoridades sanitárias, a Igreja se faz presente, cumprindo sua missão, tanto junto aos fiéis católicos quanto junto a toda a humanidade.”

Missa drive-in celebrada em 13 de setembro na Praça da Igreja Matriz de São José, em Olímpia (SP). Imagem: Reprodução/ Facebook Paróquia São José

Entre as poltronas e as quatro rodas

Apesar de tantas situações inusitadas vividas com o drive-in, o cinema ainda é o carro-chefe desse modelo. Durante a pandemia, diversas pessoas tiveram a experiência de “voltar ao passado” e assistir um filme dentro de seu carro.

Até mesmo antes da pandemia, após a queda desse formato, alguns cinemas procuraram recriar o “clima drive-in” dentro das salas de exibição. O CineSesc, que funcionou nos anos 1990, e o Belas Artes, na década de 2010, são alguns exemplos. Além disso, há diversos festivais que promovem Sessões ao Ar Livre, como a Mostra de Cinema SP, que exibe filmes silenciosos com acompanhamento de orquestras. No entanto, tudo acontecia fora dos automóveis, e foi apenas com a pandemia que o cinema drive-in se tornou mais popular novamente. “Na verdade, vivemos o ‘De volta para o futuro’”, diz Ninho Moraes, cineasta, roteirista, jornalista e professor.

Durante esse período desafiador, todo o setor do entretenimento está passando por uma enorme carência econômica. Segundo Ninho, os cinemas drive-in, apesar de contribuírem financeiramente, estão longe de arrecadar o que os cinemas ganham. De acordo com o cineasta, a pipoca e a bomboniére geram mais dinheiro do que os próprios ingressos.

“Creio que vão tentar criar novas formas, porque isso permite que um grupo aproveite a experiência. Mas terá sido apenas uma necessidade, uma emergência — mais uma — provocada pela Covid 19.”

Para Ninho, o cinema drive-in funcionou como uma “válvula de escape” para os tempos de quarentena. Porém, esse modelo não lhe agrada muito. De acordo com Ninho, para que uma exibição de filme seja prazerosa é preciso que haja um bom som, imagem e muita concentração, o que pode ser perdido na multidão de automóveis. “Em alguns momentos, deixará de ser cinema. Mas será sempre imagem em ação”, afirmou.

Já na visão de Sihan Felix, professor e crítico de cinema, o drive-in é mais uma vez uma “nova” forma de cinema, e pode se estabelecer a longo prazo como mais uma opção para assistir filmes. Ele ressalta que o modelo muda a experiência cinematográfica de assistir um filme em coletivo, e interpreta o drive-in como um potencial símbolo de resistência do passado que dialoga com a introspecção gradativa que vivenciamos. Segundo ele, “qualquer experiência para ver um filme é melhor do que não ver”.

Confira as percepções completas do crítico sobre essa consolidação do drive-in no pós-pandemia:

Apesar de toda a nostalgia, essa forma de entretenimento dividiu opiniões durante a pandemia. Enquanto alguns se identificaram com o formato e gostariam de frequentá-lo novamente, outros creem que o cinema drive-in não deve ser resgatado da gaveta, e possui suas desvantagens. São os casos de Júlia Gaspar Gomes e João Victor Montuori, dois jovens que vivenciaram de maneira diferente essa experiência em assistir um filme dentro do próprio carro.

Confira abaixo seus depoimentos:

Com a variedade de experiências possíveis com esse modelo, fica o questionamento: o sistema drive-in foi apenas uma solução utilizada no período de isolamento social ou chegou para ficar, nos levando a assistir filmes, formaturas, casamentos e vivenciar os mais variados eventos dessa forma?

Tendo sido positiva ou não, a verdade é que a experiência do sistema drive-in foi uma realidade em 2020, seja como uma retomada do passado ou uma inovação nascida dos tempos pandêmicos. Se essa combinação entre nostalgia e novidade permanecerá, talvez só o tempo (e a extensão da pandemia) possam responder, mas ela funcionou para tentar trazer alguma normalidade a um dos anos mais atípicos que já vivenciamos.

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Espaço para a produção dos alunos do 1º ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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