A volta do analógico

Laboratório de JO 2020
8 min readNov 16, 2020

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Por João Pedro Baricatti, Luiz Afonso Morêda, Maria Luiza Lima e Natália Tavares, alunos do 1ºJOB

São Paulo, sexta-feira, 19h30. Dia úmido, ônibus lotado, pesadelo para o assalariado padrão. Ainda faltam três paradas e mais alguns minutos de caminhada, mas a agitação já é visível. “Opa, esse é meu ponto!”, exclama, se movendo no meio da multidão em busca de uma saída. Os pés inquietos são acompanhados de constantes olhadas para a sua casa, do outro lado da rua. Finalmente em seu lar, tira os sapatos apertados e respira fundo. Agora, longe de tudo, entra em seu quarto, escolhe um filme para mais tarde e coloca um disco para rodar. Senta em uma cadeira e fecha os olhos. Finalmente ele pode se desligar e entrar um pouco no seu mundo, cercado pelos seus filmes, discos e livros e nada mais, como já cantava Elis Regina nos anos 70.

"Meus discos e livros e nada mais…" — letra da música "Casa no Campo", de Elis Regina

O aparecimento do digital não significou em nenhum momento o aniquilamento das mídias físicas, nem pressupõe isso. O que acontece, na verdade, são as adaptações que elas sofrem conforme o contexto em que estão inseridas. Segundo um recente levantamento da Recording Industry Association (RIAA), discos de vinil foram mais vendidos que CDs pela primeira vez em 34 anos nos Estados Unidos. Segundo a associação, no primeiro semestre de 2020 as vendas dos “bolachões”, como são carinhosamente chamados, foram responsáveis por 4% do lucro da indústria, contra 2% das vendas dos CDs. Esse ainda é um número muito pequeno em comparação aos 85% representados pelos serviços de streaming, mas trata-se de uma porcentagem significativa se comparada aos anos anteriores.

Vinícius Novais, 18 anos, estudante de jornalismo, é uma dessas pessoas que preferem ouvir música à moda antiga. “Meu pai tinha alguns LPs da época da juventude dele, quando só se ouvia música no vinil, e aí, como o som era muito melhor e eu gosto muito de música — porque sou músico — , comecei a ir atrás de mais qualidade.”

Alguns discos da coleção de Vinícius. Foto: Vinícius Novais

A diferença na qualidade entre as mídias também é verificável em obras cinematográficas. “Muitos filmes brasileiros antigos você consegue encontrar em uma qualidade boa em DVD, só que, quando você vai pesquisar, só tem no YouTube em 240 píxels”, afirma Luca Scupino, 20 anos, estudante de cinema e colecionador de filmes. Para ele, a aquisição de DVDs se dá pela experiência proporcionada: “A paixão por cinema também passa por uma paixão do cinema enquanto objeto, enquanto mídia física. Eu acho que isso traz uma relação diferente com o filme, uma relação mais profunda, mais duradoura, pelo menos no meu caso. Acho que é um negócio que funciona muito pra mim, e que me ajudou muito, inclusive, a conhecer novos filmes”. Ele foi acumulando tantos DVDs ao longo do tempo que, agora, já conta com mais de oitocentos itens em sua coleção.

Coleção de DVDs e Blu-Rays de Luca. Foto: reprodução/Instagram @luca_scupino

Tudo começou quando Luca ainda era bem pequeno: “Eu tinha contato com DVD, aqui em casa, via a capa do filme e aí eu queria assistir”. E isso foi se alimentando graças à Versátil: “Ela é uma das únicas distribuidoras que eu continuo comprando com uma certa regularidade, porque eles lançam exatamente o tipo de filme que eu passei a me interessar e assistir, que são filmes raros, que você só conseguiria encontrar se fosse DVD e que mesmo pra baixar seria difícil de encontrar. E eles disponibilizam isso, em edições boas, com bastante material extra, preços bons”.

André Melo, um dos diretores da Versátil, conta como a produtora e distribuidora de filmes lança seus títulos:

Em outro momento da entrevista, André afirma que não há forma melhor do audiovisual ser armazenado do que em DVD. Luca pensa igual: “Mesmo em streamings, a gente vive muito uma cultura do disponível: você sabe que vai estar lá, mas ao mesmo tempo eu posso assistir um filme hoje e aí eu vou entrar amanhã na Netflix e o filme nem vai estar lá porque eles tiraram. Então, existe sempre essa insegurança, que a mídia física supre muito bem”. Outra vantagem, por ambos concordada, se refere ao material extra que, pelo cinéfilo e estudante de cinema, é muito bem aproveitado. André explica: “O cinéfilo quer ver final alternativo, quer ver making of, quer ver cenas deletadas, quer ver um trailer, um documentário, como é que foi feita tal cena… e isso a gente começou não só por causa do cinéfilo, mas também pelo estudante de cinema, de artes visuais, de fotografia ou até de teatro”.

Às vezes, a paixão por colecionar não parte do próprio colecionador, mas de uma semente plantada por alguém à sua volta e cresce em seu peito com o passar do tempo. Foi assim com Luiz Henrique Borba Paes, de 25 anos, um colecionador de quadrinhos há dezessete. “Em um dia aleatório, o meu pai conversando comigo falou sobre a infância dele e como ele tinha uma coleção imensa de quadrinhos de super-heróis, bangue-bangue, aventura; um montão de coisa! Eu ainda criança, ouvindo aquele relato, fiquei maravilhado, imaginando como seriam essas tais revistas. Meu pai disse que, conforme ele foi crescendo, foi se desfazendo das edições, porque o interesse diminuiu, mas, quando chegou na idade em que estava me contando essa história, se arrependeu muito porque aquilo foi parte da história dele e ele já não tinha mais. Daí, dessa história ele me levou na banca e deixou eu escolher uma edição que eu quisesse, e de lá pra cá não parei mais!” Hoje, a coleção de Luiz Henrique chega aos inacreditáveis 12 mil itens.

Estante com todos os quadrinhos de Luiz. Foto: Luiz Borba

Para a quantidade de gibis da Turma da Mônica pertencentes a um adolescente médio, a organização já se faz fundamental, imagina para esse grande número. “Geralmente tiro umas duas horinhas por semana pra catalogar e organizar as novas aquisições. Acho que pelo menos uma vez em cada dia a coleção está presente na minha rotina. Eu coloquei uma meta de todo dia ler um quadrinho que seja pra não perder o hábito da leitura.” Ele acrescenta: “Sempre tenho em mente comprar os títulos que leio recorrentemente mês a mês em bancas pra não deixar esse ambiente morrer”.

Mas não se engane: Luiz Henrique não compra tudo o que vê pela frente. “Eu vou nas oportunidades e não no que de fato poderia estar querendo no momento, porque aí o preço pode ser o triplo ou até quádruplo às vezes. É até um lema que eu levo do colecionismo: o bom colecionador tem que ser paciente e se atentar às oportunidades!”. Apesar de se conter nas compras, Luiz prefere tudo em mídias físicas: “Eu acho que a mídia física carrega história, é um item que vai perdurar ao longo do tempo, e vai trazer junto de si as histórias das pessoas que a possuíram. A mídia digital é mais 'cômoda' e relativamente mais barata, mas ela é fria e sem sentimentos. Acho que ela não deixa marcas que poderão ser vistas daqui a vários anos”.

HQ nº 1 do Tex, lançada na década de 70. Atualmente, Luiz tem a coleção de Tex completa (são cerca de 600 números com publicação ininterrupta por mais de 50 anos). Créditos: Luiz Borba

Sobre o futuro das mídias físicas, ele acredita ser promissor: “Nós temos grandes editoras como a Pipoca e Nanquim, Veneta e Darkside trazendo cada vez mais conteúdos densos e mais complexos pro mercado. Acho que isso está expandindo o pensamento da galera sobre o quadrinho em si”. Mesmo sabendo que nada se equipara ao passado, segundo ele o mercado editorial brasileiro tem conseguido progressos. “Acho que outro grande aliado para novos leitores é o mangá, que, a cada ano, tem cada vez mais adeptos também por conta da indústria do anime. Então, vejo o mangá como porta de entrada pra molecada conhecer cada vez mais a fundo os quadrinhos na sua totalidade.”

Na mesma linha de quem prefere o papel, a Antofágica, uma editora de livros, surgiu em 2019 por causa da paixão pela leitura de Sérgio Drummond e da vontade de Daniel Lameira de trabalhar com clássicos da literatura mundial. Sabendo que muitos os consideram “chatos e difíceis”, a editora teve que bolar formas de chamar a atenção. “Os clássicos têm que chegar até os jovens, não o contrário, e de uma forma atraente. Com um projeto editorial e uma capa bacana, com ilustrações na obra ou com textos extras. A gente pensa com muito carinho: ‘Como a gente faz com que a experiência de leitura não termine nas últimas páginas do livro?’ ”.

A ideia da Antofágica, segundo outra de suas fundadoras, Luciana Francchetta, é “apresentar ou reapresentar os clássicos para um novo público (mais jovem, entre 18 e 25 anos), e também reapresentar para um público que são pessoas que tiveram contato com esses livros mais na adolescência, no começo da vida adulta, e foram apresentados a esses livros, em uma forma um pouco obrigatória — ‘Você tem que ler Memórias Póstumas para o vestibular’–, o que traz um peso chato e enfadonho para a leitura”. No entanto, ainda segundo Luciana, “esses livros são a fonte de muitas produções que vemos hoje, tanto de escritores contemporâneos quanto de obras de entretenimento, filmes, séries, games. Então, tem muita riqueza nessas obras consideradas clássicas e temas também muito atuais, ainda muito pertinentes para os nossos tempos”.

Sabendo da importância que os livros têm, a editora aproveita-os para levantar discussões, normalmente com uma apresentação e mais dois ou três textos complementares. Mas em nenhum momento deixou de reconhecer que, para expandir essas ideias, as redes sociais são grandes aliadas. “O digital permite ter uma conversa muito mais direta e aberta com o seu público final. Logo, a gente tem que estar no YouTube. O Instagram é legal, porque temos que ter um lugar para trabalhar as fotos, mostrar esse produto. Então, a gente decidiu não investir na mídia tradicional e pegar os nossos recursos e levar para o digital.” É a união das mídias para a manutenção da existência duradoura da física.

“Eu não acho que vai desaparecer tão fácil, assim como o livro impresso não desapareceu com Kindle. A história das mídias é basicamente isso de uma aprender a conviver com a outra”, afirma Luca Scupino, o colecionador de DVDs. Nesse mesmo sentido, André Melo, um dos diretores da Versátil — produtora e distribuidora de DVDs e Blu-rays — , relembra: “Meu pai me falava uma coisa: o livro nunca vai acabar, que é quando veio a internet, o Kindle. O trabalho de pesquisa não vai acabar por causa do Google. O Ibope não vai perder por causa de uma enquete do Facebook. Então, existem ainda instituições, produtos e elementos que trazem um pouco da coisa no ser humano que ainda é necessária”.

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Espaço para a produção dos alunos do 1º ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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